2 de abr. de 2016

Metamorfose de Narciso

Eu não gosto de anabolizantes. Muita gente não gosta. Mas muita gente gosta de maquiagem, peito de silicone e remédio para o cabelo crescer e eu não vejo muita diferença disso pra um anabolizante.

Anabolizantes são aquelas pílulas ou injeções que as pessoas tomam para ficarem maiores, mais magras, mais desejáveis. Ser menos de si aparentemente é ser bonito. Beleza, entretanto, é um conceito relativo. Gregos, renascentistas e pós-modernistas, para citar apenas algumas fases da humanidade, entendem o belo de formas diferentes: mais musculoso, mais gordo, estética acima de tudo. Não é preciso ir muito longe para ver a complexidade do tema: Monalisa ainda é considerada a mulher mais bela do mundo, mas ainda é incerto se a pessoa que serviu de modelo era um homem ou uma mulher. Transgenia artística? Androginia natural? De qualquer forma, é comum ouvirmos que uma mulher halterofilista é feia "porque parece um homem." 

A vida imita a arte que imita a vida. 

De tantas mil maneiras que a beleza pode ser, a que me incomoda é a arbitrária. É comum, e correto, diga-se de passagem, ouvir que anabolizantes aceleram um processo metabólico que aconteceria naturalmente. Opta-se, entretanto, por uma instilação de hormônios, que não vai causar muito menos do que uma TPM severa (pelo menos assim os homens entendem um pouco do nosso drama). Cabelos também crescem naturalmente - cerca de 2cm por mês com uma dieta saudável. Sei disso porque já fui careca um dia. Você também. Todos fomos. Talvez demore dez anos, talvez demore dois, para que as pessoas tenham o cabelo na altura que desejam, mas isso sempre acontece (a menos, claro, que alguma doença aconteça - nem entrarei nesse assunto). É possível alcançar esses objetivos, e outros, com regularidade de exercícios e alimentação adequada. Para que querer isso para ontem, então?

O aparte aqui se dá, obviamente, no caso da maquiagem, que não atua diretamente em processos biológicos, mas cuja praxis é muito semelhante: a obtenção de uma qualidade que originalmente... não está? O olho não é naturalmente destacado ou é oriental demais (como se isso fosse ruim...) e é preciso arredondá-lo? Há uma cerimônia chique e é necessário parecer diferente - porque no cotidiano é sempre igual? É sempre pobre? Porque é preciso ficar bonita (porque normalmente não se é?)? 

Essas respostas, que eu questiono quando me perguntam por que não gosto de maquiagem, são sempre rebatidas com "Sou, mas quero mais." Há uma necessidade de ser e ter logo, já. Deixam a paciência para o trânsito caótico da cidade e para as longas viagens (que chegam a custar o dobro do preço para não ficar o dobro do tempo no trajeto). A beleza, seja ela qual for, deve ser adquirida a todo custo antes de pensada e refletida. 

No espelho nunca somos; estamos. Ser é muito difícil de mudar. Mas se podemos ser quem quisermos, que seja hoje.


A vida imita a arte, que imita a vida.

Metamorfose de Narciso - Salvador Dalí.
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23 de fev. de 2016

O quarto azul

Comecei a escrever aquele livro que há anos venho postergando. Cheguei a fazer um croqui dos personagens, espalhei diagramas pelas paredes azuis do quarto pra não me perder na narrativa da história. Você me ensinou isso. "Quando a ideia é muito longa, minds might be tricky", você dizia. "É preciso organização espacial pra mente entender os arranjos da literatura." A história está engatinhando. Tem 30 páginas - feitas em um dia - e as ideias estão borbulhando. 

Eu comecei a escrever isso porque você disse que seria legal, e está mesmo sendo. Toda vez que tenho um pensamento, olho pra uma das paredes e, mentalmente, modifico as conexões. Cada parede é uma parte da história, e tenho ainda uma parede livre, espaço de sobra para rabiscos. Rearranjo alguns personagens, mexo as ideias de um vértice a outro. Uso o perímetro da porta até a janela como uma régua, para medir a progressão dos acontecimentos, que têm que caber em todo o espaço o qual esta reta possa atravessar (parece curto ou muito estreito, mas vai do chão ao teto. O pé direito é alto). Para cada ideia, penduro um barbante no ponto inicial e levo até o ponto desejado. Quando penso que é o desfecho que quero, prendo com fita adesiva. Já arranquei tantos barbantes da parede na tentativa de mudá-los de lugar que as paredes estão ficando sem tinta. 

Essa ideia quem deu também foi você. Você gostava de pintar as paredes e reorganizar as coisas, então acho que se eu destruísse um cômodo isso te daria ânimo para fazer um projeto, remodelar o espaço, renovar o ambiente.. enfim. Trazer aquela paz que é abafada pelo caos. Fazer brotar a flor de lótus.

Tantas coisas que você quis que eu fizesse... e eu fiz, porque eram boas pra mim também. Plantei uma árvore - que fazia uma sujeira ridícula no jardim, você tinha verdadeira paixão por jardinagem. Tive um filho - se cachorros contam como um - e ele roía os móveis e sujava a varanda, mas você não ligava porque todo Natal tínhamos uma nova sala ou cozinha, e novos vidros na varanda, pra que o vizinho do sexto andar não reclamasse da limpeza. Parei de tomar refrigerante e regulei a alimentação - confesso que adorei quando o cabelo parou de cair. Entrei pra academia e até meu cardiologista elogiou a perda de gordura. Agora estou escrevendo um livro, mas a verdade é que de trinta páginas, só tenho o título - provisório. Todas as linhas são resultado de space porque, na minha cabeça, talvez a próxima tentativa me desse subsídio para escrever algo substancial. Isso nunca aconteceu.

Mas em meio a toda essa reviravolta que você trouxe na minha vida, eu me vejo enrolada nesses tantos barbantes pendurados. Acontece que você não me pediu pra sair, mas saiu. Você não me disse o que fazer, mas fez, e eu não estou acostumada com isso. Você me deu a ideia, me deixou com a confusão, e eu não consigo mais encontrar o ponto de partida em um quarto cujas paredes nem me permitem mais tirar conclusões. No desespero, eu tentei pintar uma parede com um pouco da tinta que restou da última reforma, mas mesmo depois de horas ainda não consegui sequer conjecturar uma possibilidade. Havia apenas silêncio e a sensação de um quarto obscuro, solitário. Não sei se foi porque, inadvertidamente, pintei a sanca, ou se foram as gotas de tinta que mancharam o rodapé, que não estava protegido, mas nada que eu pudesse fazer por conta própria me daria a resposta que eu precisava.

Comecei a pintar os barbantes e todo o resto do quarto. Talvez dê pra começar do zero se tudo estiver da mesma cor, como se nada nunca tivesse acontecido.

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