É preciso um bocado de tristeza
(Raphaela Viana - 2010)
Era um daqueles dias em que chuva e sol pareciam ter selado um contrato: a chuva não inundava o bairro nem o sol derretia os sorvetes do caminhão.
Um dia bom pra soltar pipa, mas eu estava dentro de casa vendo o sobe e desce do seu peito e pensando em mamãe, que também estava num sobe e desce na escada da patroa.
Quando ela me disse que eu ia ganhar uma irmãzinha, eu pensei que você fosse chegar numa sacola junto com as verduras, que ela pechinchava na feira, ou que, então, um dia eu ia ouvir um choro vindo da geladeira, que vivia vazia, e você ia estar lá dentro.
Levei um baita susto quando soube que você estava dentro de mamãe. Pensei em como você tinha ido parar lá dentro e deduzi: ela comprara você na feira, mas a fome era tanta que ela não aguentou e te engoliu. Fiquei morrendo de medo e parava de brincar assim que ela mandava. O Zeca e o Fumaça ficavam meio aborrecidos porque eu desfalcava o time, mas eu pensava que, se desobedecesse, ela também me engoliria.
Quando cheguei e te vi no colo de mamãe, não entendi nada, mas até que fui com sua cara. Você era careca, molenga, quentinha e banguela. Eu gostava de te carregar e conversar com você - você não falava muita coisa, apenas fazia uns barulhos e sorria às vezes. De vez em quando eu me desesperava pensando o que eu tinha dito porque você explodia num choro e não parava até que mamãe te desse o leite que saía dos seios dela.
No começo eu me empolguei com você, enchendo suas fraldas e chorando pela casa, mas depois foi meio chato porque mamãe saía pra trabalhar e eu queria sair pra brincar, mas não podia - tinha que cuidar de você.
Mas nesse dia ela não chegou e você disparou a chorar. Quem veio nos socorrer foi dona Etelvina, nossa vizinha, que devia ter uns trezentos anos, mas sabia das coisas. Sabia cuidar de gente molenga e banguela como você. Eu ficava pensando quando mamãe voltaria, mas até hoje, como você sabe, ela não voltou.
Dona Etelvina foi muito gente fina, mas morreu logo, deixando a gente a Deus dará. Eu não ia mais à escola, você já sabia andar, já tinha dente e já não era mais tão molenga quanto antes. Então eu arrumei aquele emprego no sinal, e tinha que ficar esperto, vender as mercadorias do seu Walmir e cuidar de você ao mesmo tempo.
Fomos crescendo assim, juntinhos, e eu te ensinei coisas muito importantes: te ensinei que na descida a gente tem que apertar o freio de trás, senão a bicicleta vira em cima da gente; te ensinei a como dar o melhor peteleco pra ganhar as melhores bolinhas de gude; te ensinei também que verdura era ruim, mas que, se a gente não comesse, ia ficar parecido com seu Walmir.
Você cresceu - muito rápido pro meu gosto - e eu resolvi mandar você pra escola. Perguntei pro seu Walmir como é que fazia e ele falou de uma tal certidão de nascimento. Estranhei e perguntei o que era aquilo. Ele disse que era pra provar que você existia - eu ri. Então seria moleza: era só te levar lá pra eles verem que você existia mesmo, mas ele disse que a tal certidão provava que você existia dentro da lei. Então me aconselhou que voltasse lá no barracão pra procurar a certidão.
Voltei e, quando eu estava lá, em meio à poeira e a teias de aranha, aconteceu uma coisa estranha: eu comecei a chorar. Não me pergunte por quê, nem eu sei. Achei duas certidões e um retrato de mamãe, que deixei por lá. Pensei no que Walmir tinha dito antes e estranhei: como é que um pedaço de papel prova que alguém existe? Fiquei meio aborrecido com essa tal lei.
Seu Walmir te matriculou na escola. Era mandão e carrancudo, mas no fundo tinha bom coração. Até seu material ele comprou. Assim eu podia trabalhar mais tranquilo, pois não tinha que ficar cuidando de você.
Passaram-se os anos, saímos do sinal e fui trabalhar na oficina do Fábio Júnior, que tinha este nome por causa da mãe dele, que era fã do cantor. Arrumamos um barracão lá no morro do Pardal Vermelho e, enquanto você estudava, eu trabalhava pra garantir o nosso sustento.
Até que um dia você começou a perguntar por mamãe e eu, sem saber o que dizer, dizia que aquele não era assunto pra você, o que te deixava uma fera. Você chorava todas as noites e brigava comigo. Às vezes eu também chorava baixinho e olhava pro céu, perguntando aonde ela tinha ido. Ela ia voltar um dia? Por que ela foi embora? Eu me perguntava as mesmas coisas que você, mas não me desesperava. Eu queria era cuidar de você de um jeito que você nunca abandonasse ninguém.
Até que você, eu sei lá por quê, se cansou da escola. Não queria mais saber, bateu o pé e disse que não voltaria. Foi quando eu tive que me segurar pra não te sapecar uns cascudos. Acabei vencendo na marra, te colocava pra estudar e pra me ensinar, assim aprendíamos juntos e íamos, aos poucos, nos acertando.
Fomos melhorando de vida. Fui trabalhar de mecânico na prefeitura, compramos essa casa, você passou no vestibular e eu voltei a estudar.
E hoje, na padaria, onde tocava Samba da bênção, notei seu olhar cúmplice no verso: "mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba, não." Ao chegar em casa, te escrevi esta história, uma das muitas que pretendo escrever, mas claro que esta será sempre especial, pois esta é a nossa história e eu a coloquei no papel justamente hoje, no dia da sua formatura, pra te dizer: parabéns, doutora Marivalda, você conseguiu!
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