10 de jan. de 2015

"We get so near yet so far away"

- Não, obrigada. É só, querido.

E foi assim, estarrecida, que Jô saiu do estabelecimento. Aquela pessoa, entregando sanduíche, refrigerante e batata frita numa bandeja parecia-se tanto com ele... até o tom de voz era parecido: um soprano escondido em algumas tosses devido ao tabaco. Não sabia por quanto tempo havia fumado, mas, a julgar pela ligeira rouquidão com que começava uma frase logo após engolir um pouco de saliva, deve ter fumado por, no mínimo, 15 anos. "Até nisso, parece o Daniel!" ela pensou. Mas seu nome era Augusto.

Augusto tinha cerca de 27 anos e cabelos tão ruivos quanto ferrugem. Os olhos, que lembravam jabuticabas, eram tão profundos quanto a pele pálida os contrastava. Magro de ruim, possuía uma simpatia difícil de encontrar em qualquer pessoa desse lado do hemisfério e era ágil com os números. Trabalhava num fast food de esquina que lotava ao meio-dia e às cinco da tarde e era nessas horas que Jô gostava de ir lá só para ver a habilidade com que Augusto mexia na caixa registradora e entregava os pedidos. Era rápido de contas, não se confundia com pedidos longos (mas tinha algum problema com os clientes indecisos) e estava sempre com um sorriso no rosto.

- Esta é a última semana que nos vemos, dona Jô. Vou trabalhar em outra empresa.
- Ah, é? Onde?
- Um escritório de advocacia no centro. A dona é amiga da minha namorada e está precisando de alguém para ajeitar as finanças. Isso aqui não é emprego pra ninguém, né?
- Ah... sua namorada... é sempre bom ter alguém para amar, não é? Me diga o endereço do escritório e prometo te visitar constantemente.
- Vá sim. Tomamos um café! Aqui está: sanduíche de salmão com molho de ervas, batata frita e refrigerante diet. Tenha um bom dia!

Era ele escrito. Nas atitudes, no sorriso, no jeito de lhe olhar... mas não era ele, nem tinha como ser. Daniel não saía de sua mente. Era o amor de sua vida e disso não havia dúvidas, nem ninguém poderia tomar seu lugar.



O ano era 1968. Daniel tinha apenas 25 anos quando foi, por livre e espontânea pressão, juntar-se a amigos de escola, faculdade e de vida em um dos conflitos mais entorpecidos e violentos da história. Daniel era safado; tinha tino pra business. Quando fez 18 anos começou a trabalhar em uma empresa pequena, mas em ascendência, da cosmopolita New York e 3 anos depois já havia comprado seu próprio apartamento - um loft a poucos minutos do trabalho, que ele próprio decorou num estilo moderno pra época. Jô (então, Joanne) ganharia uma casa no subúrbio com três quartos (uma suíte para ela e um quarto para cada filho) e um escritório com muitas prateleiras, cada uma recheada de livros. Joanne adorava ler e das capas dos livros que havia lido tirava inspiração para suas estórias nunca publicadas - verdade seja dita, só Daniel sabia de sua vocação literária. 

Apesar de aos 23 já gerenciar uma equipe boa e conseguir fechar vários contratos importantes para a empresa para a qual trabalhava (transformando um mercado ascendente regional em uma tímida engrenagem internacional), Daniel precisou ir para a frente de combate por insistência de seu chefe. Este foi seu presente por haver sido promovido, aos 26 anos, ao cargo de gerente da mais nova unidade da empresa (que seria inaugurada alguns meses depois em uma cidade do interior que estava chamando a atenção de diversos empresários do país). Era preciso comprovar que a guerra era lucrativa e segura para quem estava do lado dos certos. Também era bem verdade que o calibre de LSD que acertava o inimigo era não só fabricado por um de seus subalternos mas também sua grande motivação para a viagem. Daniel queria ir, queria ver (com seus olhos, ali, in loco) o que só era possível saber por fotos e vídeos. Magricela, jamais conseguiria uma vaga no exército - mas, com os contatos certos, talvez conseguisse um lugar ao sol.

Daniel não explicou a Joanne seus motivos; deixou que as lágrimas os explicassem. Um soluço rouco, mas grave, afogou-se no afago de um abraço longo tão em dúvida da escolha quanto certo do destino. Nos sete anos seguintes Joanne sonhava com aquele que tantas vezes lhe havia dado motivos para sorrir e chorava - por antecipação, por pressentimento ou pela falta de ambos.  Só receberia notícias do esbelto ruivo de cabelos ondulados por cartas. Em uma delas, ele havia contado um perrengue que passou: atingido por estilhaços de uma granada, precisou amputar a perna direita na altura do joelho. Ainda assim, estava fadado a ficar no acampamento fazendo o que pudesse. Impedir que os inimigos avançassem era fácil, logístico, exigia diálogo constante - e nisso, o safado era bom. "Que liberdade é essa, em que precisamos nos afastar daqueles que nos acalentam o coração no frio desfalecedor do inverno?" ela pensava, mas ele teimava em responder "Estou fazendo o que gosto. Eu também te amo, me desculpe, mas é assim que quero viver."

Lá pro fim de abril chegou uma nova carta. Daniel estaria de volta em poucos dias. Tinha algumas escoriações e precisou amputar a mão esquerda. "Mas meu coração está intacto. Estou voltando para casa." Joanne adiantou-se e preparou uma recepção digna de honras e glórias. No dia informado (15 de maio) preparou um grande banquete, convidou os amigos (que restaram) e os companheiros de trabalho mais próximos; espalhou caixas de som pela casa que emanavam os grandes ícones do jazz e blues, sabia que seu bem mais precioso comemoraria seu retorno da forma que mais lhe satisfizesse. A campainha toca. Era Richard, um amigo de infância daqueles olhos de jabuticaba.

A poucos dias do aniversário de 33 anos de Daniel, Joanne não abraçaria seu filho. Ele não voltaria.

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