3 de dez. de 2016

"Se eu perder esse trem..."

Dezessete e trinta de uma sexta-feira de dezembro, a primeira do mês. Vou correndo pela estação na tentativa de conseguir passar pela catraca a tempo, mas a escada rolante estava parada, o que causou fila até pouco depois da bilheteria. Não havia jeito, precisaria esperar. Esperar as pessoas passarem pela roleta, esperá-las descerem - com os mesmos passos sem vontade da música. Esperar, enfim, o trem em direção à Central.

Quem é do ramal de Gramacho e Japeri entende o drama que é perder um trem. Mesmo às nove da manhã de segunda-feira o intervalo entre trens no ponto final não deve ser muito menor do que dez minutos. Sorte a minha que sou do Méier, ramal de Deodoro, não espero mais do que cinco minutos. 

Se tem algo do que não posso reclamar é de minha sorte: naquela sexta-feira o clima estava estranhamente agradável. Apesar do horário de verão, não havia qualquer possibilidade de calor escaldante: as nuvens negras, indicando a chegada de uma tempestade tropical, eram levadas para longe por uma brisa querendo sentir-se gelada. A Rua Dias da Cruz era cinza não apenas no chão, mas nas pessoas e nas nuvens. Adolescentes reclamavam dos pais, os adultos maldiziam o governo, o papagaio da dona Gertrudes xingou o vizinho de mal-parido de novo e uma mulher deu com a bolsa na cara de um taxista que passou a mão em sua coxa. Tudo parecia normal, exceto por ninguém estar suado logo após sair do banho. Era uma sexta normal de início de mês, mas tudo parecia meio mórbido, meio fim de festa, meio última sexta.

O barulho das minhas ideias foi interrompido pelo som estridente do maquinário. O contato,em alta rotação, dos parafusos dos vagões com o ferro (muitas vezes, já incandescente, embora nesta sexta não fosse o caso) do trilho do trem parece aguçar nos ouvidos a necessidade uterina de deslocar-se para seus afazeres. Ir àquele escritório na Avenida Presidente Vargas, um quadrado refrigerado em que você confortavelmente discorda daquele que paga suas contas. Ou visitar o médico que vai te passar exames de laboratório, procedimentos clínicos, um coquetel de remédios e sessões de quimioterapia para, no final, você só contar com sua crença em plantas medicinais e anjos celestes. Talvez você esteja na plataforma esperando o transporte que te levará a um encontro casual ou que te afugentará de vez de uma situação indelicada. 

Qualquer que seja o motivo, a sua paz interior será interrompida, primeiramente, pelo ranger dos vagões. Depois, um ódio profundo tomará conta do seu ser quando perceber que o trem está com algumas cadeiras vazias e que foram tomadas por gente que saiu correndo do outro lado da plataforma só para sentar-se ali, naquela cadeira que você tanto custou a achar. Na busca por lugares em outros vagões, você vê que não há escapatória: precisará ir toda a viagem em pé. Maldiz a pessoa que se sentou onde você queria, mas logo depois um pensamento invade sua mente: "Pode ter algum problema interno e eu estou fazendo um julgamento errado", mas logo em seguida conclui: "Maldita, tomara que pegue pra Caxias depois." Nada contra Caxias, até tenho amigos que são de lá, mas os trens são bem cheios. Especialmente às dezessete e trinta e cinco.

Outra sabedoria que só quem anda de trem conhece: vende-se o mundo nos trilhos. De barbeadores a cortadores de batata; de jornal a bala de banana Joice (uma moça no ramal de Deodoro tem a voz aveludada, parece radialista - moça, qualquer dia você tem que mandar seu currículo pra tevê!). Tenho a impressão de que só não se vende a mãe, mas tenho até medo de saber o motivo. Nunca vi ninguém comprando, mas sempre são as mesmas pessoas vendendo. Mas essa sexta tinha algo diferente.

Três pessoas vestidas meio hippies, meio carnavalescos, estavam fazendo mágicas e espalhando sorrisos e abraços pelo trem. Numa sexta-feira que combinava fim de mês com início de dezembro, ou seja, aquela sensação de fim de mês com fim de ano, fim de esperanças, fim da porra toda. E eles ali, apenas cantando, tocando uma gaita caseira, um acordeon que eu não sei até agora como está de pé: um tecladinho desses de bebê com uma bandoleira, pra ficar pendurado ao músico, e um tubo de plástico, preso grosseiramente com cola de pistola, com uma piteira na ponta para passar o ar. O que cantava fazia, ao mesmo tempo, umas mágicas que até o Senado brasileiro duvida. Por fim, uma simpática moça passava um chapeú com moedas, recolhidas de quem quisesse doar, e um papelzinho, que ela oferecia a quem não pudesse. 

Durante aqueles 8 longos minutos entre as estações Méier e Maracanã bolinhas sumiram e reapareceram, fizeram propaganda para um senhor, já cansado da própria idade, vender seus amendoins e suas balinhas refrescantes, animaram um bebê que chorava ao entrar no Sampaio. Puxaram uma música dos Mamonas Assassinas e o vagão inteiro se animou como numa roda de samba. Não posso provar, mas minha convicção diz que havia uma pomba-gira apaziguando os ânimos com sua dança e risada únicas, porque talvez só isso mesmo explicasse tantos sorrisos e animação numa minhoca de metal de fim de tarde, fim de sexta, fim de semana.

Quem sabe até fosse isso mesmo, a aproximação com fim de semana, que deixasse tudo mais leve e colorido. Talvez fosse só uma questão de mudança de paradigma.

Chegou a estação Maracanã e eu fiz questão de atravessar o vagão todo para dar-lhes os únicos centavos que tinha na mochila. Agora dançavam sem som em frente a uma criança autista, que, maravilhada, tinha toda a felicidade do mundo no sorriso. A moça que acompanhava a trupe agradeceu-me carinhosamente com o olhar e deu-me um dos papeis que estavam no chapéu. Na pressa de sair do vagão antes que a porta se fechasse, segurei o papel forte em minha mão e, ao contrário do fluxo, não fui em direção à escada rolante, mas posicionei-me ao lado dela. Agora aquelas pessoas todas já não me incomodavam mais, eu meio que estava gostando delas, da forma como todas formávamos um só coro ao cantarmos. Mas queria paz para ler o conteúdo do papel sem me preocupar com a mochila - no Rio, infelizmente, não se pode confiar em muitos contextos.

Enquanto tentava passar pelas pessoas na contra-mão e com a mochila à frente do corpo para evitar assaltos ou furtos, as portas do trem fecharam e a locomotiva seguiu seu curso. Vi os olhares da moça se afastando e não sei dizer se diziam "até breve" ou "adeus", mas, seja lá o que for, eram definitivamente canções alegres.

A sós e sem qualquer possibilidade de interrupção, finalmente abro a mensagem, que ela sacou aleatoriamente do grupo de tantas outras iguais a ela: "Os homens embarcam nos trens, mas já não sabem mais o que procuram. (Saint-Exupéry)"


Saí da estação. Olhei ao redor. Precisava descer a rampa e ir à aula. Precisava comparecer aos encontros, ter produção, publicar, escrever, participar... e a vida seguiu seu rumo, qualquer que ele tenha sido. Mas dessa vez, um tanto mais leve.

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