12 de set. de 2014

"A catch in my throat, choke; torn into pieces"

Eu vim andando pela rua com uma ideia na cabeça, mas era madrugada, eu estava sozinha e tive receio de sovar minhas ideias num pedaço de papel ali, sem ninguém para apreciar a eloquência. Guardei-as pra mim num mantra, tecendo cada marcador discursivo, cada sinonímia, cada jogo de palavras numa mandala em preto e branco. Ela deveria ser colorida, mas de alguma forma minha mente havia perdido as nuances. 

Ao longo do caminho passei por lugares em que já estive e cujas memórias poderiam ter morrido com Brás Cubas. Casas que eu quis derrubar, carros que eu quis queimar, escritos em muros que eu apaguei, re-escrevi e apaguei novamente. (Quebrei a caneta depois pra não me arrepender de novo, mas eu também me lembrei disso e quis quebrar minha própria cabeça pra não precisar me lembrar outra vez.) Tantas histórias, tantos desencantos, tanto alento. Por um momento lembrei do seu sorriso e quase mudei de ideia. Mudei o caminho. Eu continuava lá, entretanto, e isso me irritava mais do que você.

Acabei chegando em casa bem mais tarde do que imaginei. Perdi-me pelas ruas desertas que antes davam tanto medo e insegurança. Quando perdemos o motivo pra voltar, a inércia soa aquietante. Fiquei parada em frente à porta durante uma meia hora depois que entrei, meio sem chão, meio sem querer sair do lugar, meio sem lar. Já tem um tempo que a presença da sua ausência me transforma nesse monstro paradoxal, nessa poetisa portuguesa suicida (ah! Os barbitúricos... e aqui eu tenho o primeiro sorriso saudoso do dia). E eu não consigo evitar de me questionar por que eu ainda estou aqui nesta casa, com tanta coisa minha, com tanta lembrança boa, com tanta coisa guardada.

Peguei a última folha do último caderno que eu havia escondido. Jurei não escrever mais depois que os cadernos se fossem, mas também jurei luto literário enquanto minh'alma estivesse vazia de pranto. Dizem por aí que poeta que não chora, que não ama, que não sente, não sabe poetizar. Pois eu acho que é na ausência que o poeta se vira pra achar motivos que o façam chorar, sorrir, sentir. É na ausência da vontade que o poeta encontra motivos para querer. Mas até nisso você me ausentou. Se ainda fosse só a ausência do corpo, talvez fosse mais fácil aceitar e comprar novos cadernos; mas a sua ausência me causa corrosão dos nervos, ódio, aspúria e neologismos outros tantos para explicar a reação bioquímica fatal que me fere a pele quando lembro de você. E é tamanha a dor que eu não aguento e jogo a folha fora, queimo o caderno, rabisco o que escrevo até não mais poder ler. E não existe dor maior para um poeta, um escritor, do que fingir que sente em muito mais ampla escala a dor que ele, de fato, não consegue sequer descrever. Você modificou até mesmo a minha forma de escrita, o jeito como eu enxergo o mundo, as coisas de que gosto e intensificou muito mais o significado de fúria pra mim. E eu não sei até que ponto agradeço por você acelerar um processo interno de rejeição ou se te desprezo por me transformar numa ultra-romântica falida, escrevendo ao vento os escarros que quis deixar na sua boca.

Lá se vai mais um caderno, o último, escarrado, rabiscado, corroído e ensanguentado. E com ele minha última escrita. Embora em pouco tempo ninguém mais possa ler este amontoado de letras envolto em carvão, enxofre e salitre, eu ainda os guardarei comigo em mil pedaços, uma taça de cristal quebrada, junto ao meu coração, para que os ferimentos sejam mais letais do que apenas ácido desamoroso nas minhas vísceras. Verdade seja dita: arranquei página por página até chegar nesta, na esperança de que o caderno acabasse logo, e não há meios de trazê-las de volta. Piedade delas eu tenho, mas, como tudo na vida, se foram. Talvez eu deixe uma carta, com destinatário bem claro e assinatura falsificada; talvez eu apenas assuma que tenha idealizado demais minh'alma nas minhas páginas e deixe que minha diacronia literária se perca num vácuo temporal desconhecido. De qualquer forma, agradeço a força que você me deu por dar alguma cor a esta vida tão cinza - e espero que seja assim que você me encontre quando a notícia te chegar aos ouvidos.


"(...) viria ao menos
fechar meus olhos minha triste irmã.
Minha mãe de saudades morreria (...)
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!" 

(Álvares de Azevedo)

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