6 de set. de 2015

"Ebony and Ivory"

Eram seis da tarde de um dia de chuva tímida, que mais queria ser notada do que molhar a vista. Decidi sair com uns amigos, tomar uma cerveja, fazer qualquer coisa. Todo mundo espera algo de um sábado à noite e eu precisava desse algo pra sentir que os últimos vinte e sete anos, mestrado, doutorado e especialização tinham valido a pena. Peguei um ônibus, depois o metrô e fui observando, estação após estação, o entra-e-sai das pessoas no vagão.

Era um vagão novo, bem iluminado, todo branco. Impecável mesmo para os padrões cariocas. Os bancos todos eram cinza e isso me chamou a atenção. Os trilhos eram cinza, as estações tinham alguma coisa pintada nas paredes, algumas placas, mas era basicamente tudo cinza. A lataria por fora do vagão era cinza-metálico com uma ou outra propaganda. Parecia uma minhoca de metal deslizando por baixo de uma cidade de tom igualmente frio. Mas ninguém mais parecia se importar muito com isso. 

No fim do vagão, eu sentei em um banco que ficava de frente para todos os outros. Vi quando uma senhora de semblante gentil, meia-idade, entrou com um livro em mãos: "Misto-quente", Charles Bukowski. Um jovem de uns vinte anos, no máximo, entrou sacudindo a cabeça e batendo os pés no ritmo de bateria. Levava fones de ouvido grandes como os de um DJ, mas o iPod shuffle era tão pequenino que criava um contraste engraçado. Entrou também um senhor já de idade, bem rabugento. Não falava com ninguém, mas aparentava insatisfação. Senti alguma empatia por aquele sentimento: tampouco estava gostando de estar ali, mas era um processo necessário, eu pensava. Todos saíram na estação Central. Outras pessoas, com outros objetos e fazendo outras coisas, sentaram em seus lugares. Uma menina tinha um livro de colorir mandalas, o outro garoto falava com alguém pelo celular, uma moça mal-arrumada parecia estar indo para lugar nenhum, a julgar pelo olhar desorientado e sem esperança. E quando um saía, outro vinha para seu lugar e o tomava. Assim, como se fosse mesmo apenas um pedaço de carne que se levantou e andou para fora. Como se não fosse alguém ali, com problemas, com angústias, com uma vida. Aquela minhoca subterrânea levava pessoas de um canto a outro, algumas vezes tão apertadas que entrar ou sair é um sufoco, mas de alguma maneira não havia qualquer forma de vida ali. Eram apenas poltronas que estavam disponíveis ou ocupadas.

Perdi a estação em que deveria saltar e acabei me atrasando para o encontro. Quando cheguei no pier em que havíamos marcado um luau, todos estavam a postos. Por algumas horas bebemos, brincamos e conversamos sobre a vida, os astros, religião, filosofia, piadas e política. Gosto dessas conversas, são sempre produtivas. Gosto do que me faz pensar. Mas talvez eu, com meu ego acadêmico e um artigo publicado em revista Qualis A, tenha pensado demais. Em pouco tempo discutindo política percebi que nossas intenções eram pró ou contra alguém. Comentei: "As ideias do candidato B são muito boas, mas a prática do seu partido é historicamente ruim. Já as ideias do candidato A são ruins a longo prazo, mas economicamente necessárias para um momento complexo. Então talvez se um candidato C surgisse com propostas de A+B..." e fui interrompida com "ficar em cima do muro não ajuda a população." Não se tratava de ficar em cima do muro. Política não é um contra o outro, mas uma ideia que melhor se adeque a um bem comum. Isso não aconteceu só em política, em tudo a resposta era um sim ou não: em arte você tem um belo ou um não belo como um consenso entre todos os que não entendem uma vírgula de arte, mas acham que podem falar a partir do que gostam (uma capinha de celular do Romero Britto). O certo é biscoito e não bolacha. A garota sensual que usa short curto e pede cigarro só pode estar se oferecendo sexualmente. O homem que aceita quer comê-la. Estados Unidos é melhor do que o Brasil. Somos todos Charlie. Eu não sou homofóbico, até tenho amigos gays, mas...

GUERNICA. Era assim que eu me sentia, em Guernica. Viver tem sido cada vez mais esse vazio por dentro, essa necessidade de fuga, porque nada mais parece ser sem que haja o contrário. Até em física existe essa dualidade: se uma matéria existe, é porque existe uma anti-matéria. Se um universo existe, é porque possivelmente existe outro, diferente. A vida é uma questão baseada em alteridade, mas não precisava ser. "Ebony and ivory live together in perfect harmony", por que não?

Tonta, desnorteada, cansada de fazer novamente o que eu não quis fazer, sentei para relaxar no pier e deixei meus pés se molharem com a água daquela lagoa. Estava morna apesar do frio que o vento trazia. Sabia que aquela água era tão imprópria para banho quanto Copacabana, senão mais, mas não me importava. Eu precisava apenas escorrer para dentro da natureza, sentir a pluralidade de efeitos e não apenas dois. Deitei no pier com os pés dentro da água e fiquei olhando as nuvens ao redor da Pedra da Gávea, da Rocinha... como seria olhar lá de cima pra baixo? De baixo pra cima é como negar tudo o que tem ao redor e ver apenas o céu - que naquele momento parecia mais São Paulo do que Rio - mas lá de cima deve ser exatamente o oposto: as cores das árvores, da lagoa, da praia e da areia em detrimento do cinza. A totalidade em detrimento do ego. Por um momento quis subir no topo de uma montanha e olhar pra baixo, mas eu acabaria pulando para tentar alcançar tudo isso que não se vê no dia-a-dia e cuja falta tem gritado em vermelho-sangue nos meus ouvidos.

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