12 de dez. de 2015

Marcha imperial

Era fim de outono quando aconteceu. As árvores já estavam praticamente sem folhas e em alguns lugares já havia uma neve tímida sobre o telhado das casas. Gosto de rituais e esses dias mais frios me lembram a doçura que é chegar do trabalho, tomar um banho e relaxar na frente da TV vendo um bom filme e tomando um chá. Gosto de chás dos mais variados e de filmes argentinos, espanhois, americanos, franceses... gosto de chás, filmes e rituais e do amor que os envolve. Esse amor que nos dá motivo para retornar pra casa todos os dias, esse amor que abraça e entrelaça os dedos. Mas foi durante um desses rituais que ela simplesmente escapou das minhas mãos.

Ela apareceu na minha vida há muito tempo. Era praticamente da família. Foi um namoradinho, Hector, que me deu quando ainda morava em São Francisco. Eu era ainda muito tímido e estávamos comemorando nosso segundo Pride (na calada pros nossos pais não desconfiarem), mas parecia que nos conhecíamos há anos. Fazíamos de tudo juntos como melhore amigos de colegial costumam fazer: de baladas a maratonas de filmes, estudávamos juntos e fazíamos futebol e vôlei à tarde. Pra nossa família éramos amigos de infância, mas na nossa cabeça casaríamos, adotaríamos duas crianças e um cachorro e viajaríamos pra lugares desconhecidos todo verão. Como expressão do amor que ele sentia por mim, me deu uma caneca de Star Wars. No formato de um Storm Trooper. Em caveira. Psicodélica. Ele sabia mesmo me ganhar. 

Ficamos juntos ainda uns meses e depois Hector se aventurou no mundo, mas a caneca ficou. Acho que os rituais começaram nessa época, quando eu ainda precisava senti-lo do meu lado. Chegar em casa da faculdade depois de assistir aulas complexas e saber que ele não estaria ali para assistir séries, filmes e documentários comigo, abraçado, na frente da lareira, era menos estressante se o Storm Trooper estava - sempre quentinho, como se o coração dele estivesse colado ao meu. Era como ter um pedaço dele nas minhas mãos sempre. Com o tempo ela perdeu a simbologia do namoro e ganhou um conceito mais abrangente, quase poético, cinematográfico, e passou mesmo a fazer parte de um rito. Se você leu "O Pequeno Príncipe", jovem padawan, sabe do que estou falando.

Um dia cheguei em casa exausto. É quando você começa a lecionar na faculdade que percebe que a vida de aluno era menos árdua. Já passava das oito. Tomei um banho quente, fiz umas torradas e sentei na minha poltrona para relaxar. Havia feito um chá de frutas vermelhas com toques de baunilha - esplêndido, por sinal - e sentei para assistir uma produção independente. Chamava-se "As trilhas perdidas" e era sobre um grupo de mochileiros que há muitos anos explorava essas cidadezinhas pequenas do Oriente Médio que não eram muito conhecidas. A ideia era entender o modo de vida daquelas pessoas, dormir na casa delas como convidado (o que foi raro, mas deu certo em alguns casos), conhecer de que maneira a questão de gênero é abordada - ou não. Muito interessante.

Quando levantei para buscar mais chá, ao fim do documentário, vi o nome do produtor: Hector O'Connel. Há muitos anos não tinha notícias dele, nossos caminhos seguiram direções muito diferentes, mas fiquei feliz em saber que ele chegou no patamar que queria desde pequeno. É bom quando pessoas importantes pra nós conquistam coisas importantes pra elas, né? Um sorriso saudoso e orgulhoso brotou no meu rosto e talvez tenha sido um dos mais sinceros dos últimos vinte anos. As pessoas não entendem quando me orgulho, de graça, de coisas que até mesmo desconhecidos conseguem - acho que é por essa falta de empatia que as pessoas veem o mundo cinza.

Fui para a cozinha. A cada gota de chá vermelho com cheiro de tranquilidade que despejava na caneca lembrava dos momentos que passamos juntos, eu e Hector, e de como aquele Storm Trooper apareceu na minha vida. Lembrei dos rituais que realizávamos e da cumplicidade que tínhamos mesmo quando um de nós estava errado - afinal amigo te defende até o fim, mas também te joga um balde de água fria quando necessário. Eram bons tempos. Tive vontade de rever o documentário com Matthew e explicar a importância daquela caneca, que ele nunca entendeu, mas sempre respeitou. Recuei minha ideia: acho que ele não entenderia. Às vezes confundimos saudade sensorial e saudade amorosa e uma pode não ter nada a ver com a outra. O que eu sentia naquele momento era a saudade sensorial, é como sentir falta do gosto mais do que do ato de beber, comer ou fumar. É uma nostalgia de um momento que não se deseja reviver. Mas, ciumento como é, Matthew talvez não entenderia minhas motivações para trazer tudo isso à tona. Calei-me.

Esqueci completamente do chá sendo despejado na caneca e só me lembrei quando muito dele transbordou e caiu no meu pé, quase fervendo. O susto e a dor me causaram um espasmo acidental.

 AHHH NÃO!!! NÃO, NÃO!

*praaaa*

MERDA! MINHA CANECA! PUTA QUE PARIU!

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