20 de jan. de 2016

"Azul da cor do mar"

Fernando, 39, drogado e prostituído.
Esses poderiam ter sido meu nome e minha vida se eu tivesse levado a sério o que me disseram anos atrás. Hoje, eu me resumo a uma piteira do lado do computador, um black-out na janela de vidro fumê e uma igaçaba, presente de um tio em sua fase marajoara, que adorna o whisky que embala meus dias.

Eu não era muito diferente de qualquer outra pessoa da época: costumava beber socialmente, tinha um bom currículo, uma boa aparência e sabia falar bem. Dizem que pra mulher é mais fácil conseguir um emprego. Em alguns momentos tenho certeza de que as volumosas coxas falaram mais alto do que minha fluência em francês, mas sempre fui uma abelhinha - tanto no mel quanto no ferrão - e saber me impor nunca foi um problema. Na verdade, meu problema é a vida.

Havia essa pessoa que era muito especial pra mim e que sempre teve uma vida miserável: apesar de ter dinheiro na conta, não era da cor que esperava. O suor que molhava o dinheiro não era exatamente pelo que ela lutava. Entrou na faculdade na efervescência de um curso e, quando se formou, o mercado estava saturado. Trabalhou longos vinte ou trinta anos em algo que, na verdade, nunca lhe chamou a atenção. Depois de velha foi fazer o que realmente gosta, largou o trabalho árduo e agora está feliz. E com mais dinheiro, porque se dá ao máximo. Sempre ouvi de seus lábios: "não escute o que os outros falam. Forme-se no que você gosta."

Eu deveria ter seguido o conselho e não ter ouvido. Formei-me por ideologia, trabalho com o que não gosto, me dou ao máximo pelo que não acredito e estou fodida em um mundo que não valoriza o bem-estar social. Meus pais costumavam dizer que a minha geração é cheia de contradições: licenciados que não querem dar aula, advogados com teias na carteira da OAB, Relações Públicas ou Internacionais que têm fobia social. Estavam certos. Agora estou velha, sem saco para uma nova faculdade, levando com a barriga a escolha que fiz e segurando um forninho capitalista a ponto de desabar sobre meus ombros, tudo porque quis fazer aquilo que eu gostava e não soube perceber que o que eu gostava era uma paixão e que não existe amor em SP.

Como todas as minhas decisões passionais tornaram-se desmotivacionais, decidi que o que me motiva agora é não enlouquecer. A pior perda do ser humano é a perda ideológica, e a minha foi queimada junto com meu diploma. Mas quando não nos encontramos no corpo que temos, de que modo manter a sanidade? Eu queria meu corpo diferente assim como eu queria estudar Belas Artes, mas o medo da loucura novamente me fez dar pra trás. Aprendi que uma coisa é a vida financeira; outra, a vida pessoal. Ser homem não era mais algo que eu quisesse fazer, senão por hobby. Tive medo de, outra fazer, tomar um caminho e me arrepender - porque o mundo não aceita, porque não dá dinheiro, porque ideologia não é algo pelo que viver. 

Decidi ser Fernando e Isabel: um por amor; o outro, de nascença, por necessidade. Um é alegre, espontâneo e contente, feliz no trabalho, motivador e guerrilheiro. Quando o expediente termina, o outro só senta e conta os dias pro fim, seja por câncer ou por cirrose. Lembranças de histórias que o faziam ter fé no futuro agora não passavam de quadros tortos na parede infiltrada. Mofo, pó, whisky, tabaco e a eterna ingratidão de ver o que você mais ama quebrar na sua frente, ficar resumido a 6m² refrigerados e escuros.

Não me disseram que é isso o que acontece quando você decide fazer o que gosta, mas eu deveria ter lembrado que, na adolescência, eu não gostava mais de bonecas. 

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