23 de fev. de 2016

O quarto azul

Comecei a escrever aquele livro que há anos venho postergando. Cheguei a fazer um croqui dos personagens, espalhei diagramas pelas paredes azuis do quarto pra não me perder na narrativa da história. Você me ensinou isso. "Quando a ideia é muito longa, minds might be tricky", você dizia. "É preciso organização espacial pra mente entender os arranjos da literatura." A história está engatinhando. Tem 30 páginas - feitas em um dia - e as ideias estão borbulhando. 

Eu comecei a escrever isso porque você disse que seria legal, e está mesmo sendo. Toda vez que tenho um pensamento, olho pra uma das paredes e, mentalmente, modifico as conexões. Cada parede é uma parte da história, e tenho ainda uma parede livre, espaço de sobra para rabiscos. Rearranjo alguns personagens, mexo as ideias de um vértice a outro. Uso o perímetro da porta até a janela como uma régua, para medir a progressão dos acontecimentos, que têm que caber em todo o espaço o qual esta reta possa atravessar (parece curto ou muito estreito, mas vai do chão ao teto. O pé direito é alto). Para cada ideia, penduro um barbante no ponto inicial e levo até o ponto desejado. Quando penso que é o desfecho que quero, prendo com fita adesiva. Já arranquei tantos barbantes da parede na tentativa de mudá-los de lugar que as paredes estão ficando sem tinta. 

Essa ideia quem deu também foi você. Você gostava de pintar as paredes e reorganizar as coisas, então acho que se eu destruísse um cômodo isso te daria ânimo para fazer um projeto, remodelar o espaço, renovar o ambiente.. enfim. Trazer aquela paz que é abafada pelo caos. Fazer brotar a flor de lótus.

Tantas coisas que você quis que eu fizesse... e eu fiz, porque eram boas pra mim também. Plantei uma árvore - que fazia uma sujeira ridícula no jardim, você tinha verdadeira paixão por jardinagem. Tive um filho - se cachorros contam como um - e ele roía os móveis e sujava a varanda, mas você não ligava porque todo Natal tínhamos uma nova sala ou cozinha, e novos vidros na varanda, pra que o vizinho do sexto andar não reclamasse da limpeza. Parei de tomar refrigerante e regulei a alimentação - confesso que adorei quando o cabelo parou de cair. Entrei pra academia e até meu cardiologista elogiou a perda de gordura. Agora estou escrevendo um livro, mas a verdade é que de trinta páginas, só tenho o título - provisório. Todas as linhas são resultado de space porque, na minha cabeça, talvez a próxima tentativa me desse subsídio para escrever algo substancial. Isso nunca aconteceu.

Mas em meio a toda essa reviravolta que você trouxe na minha vida, eu me vejo enrolada nesses tantos barbantes pendurados. Acontece que você não me pediu pra sair, mas saiu. Você não me disse o que fazer, mas fez, e eu não estou acostumada com isso. Você me deu a ideia, me deixou com a confusão, e eu não consigo mais encontrar o ponto de partida em um quarto cujas paredes nem me permitem mais tirar conclusões. No desespero, eu tentei pintar uma parede com um pouco da tinta que restou da última reforma, mas mesmo depois de horas ainda não consegui sequer conjecturar uma possibilidade. Havia apenas silêncio e a sensação de um quarto obscuro, solitário. Não sei se foi porque, inadvertidamente, pintei a sanca, ou se foram as gotas de tinta que mancharam o rodapé, que não estava protegido, mas nada que eu pudesse fazer por conta própria me daria a resposta que eu precisava.

Comecei a pintar os barbantes e todo o resto do quarto. Talvez dê pra começar do zero se tudo estiver da mesma cor, como se nada nunca tivesse acontecido.

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